Azuis como o céu do sertão

Revista Terra da Gente, Dezembro 2014

Se existe um lugar com mais contrastes neste Brasil sem fim, este lugar é o Sertão. Ali, a terra amarela e rachada contrapõe um céu profundamente azul. Nos períodos de seca, a vegetação assume uma coloração monocromática e faz jus ao nome – Caatinga, que em tupi significa  ‘mata branca’. Mas os tons acinzentados deste bioma adaptado à escassez quase que permanente de água parecem ressaltar ainda mais o colorido das pequenas casas de taipa, as cores das roupas das pessoas, o sorriso largo para receber o visitante. Pois se porventura tudo parece sem vida, tem este povo sertanejo que esbanja uma solidariedade à toda prova; se ajudam, se protegem, se querem bem. E querem bem a quem quiser caminhar por aquelas bandas.

Na caatinga tem o calor que logo no amanhecer já mostra quem reina por lá. Mas tem também uma luz estonteante, quase que polarizada, a dar brilho aos espinhos do juazeiro, a reluzir o tronco vermelho da umburana, a ressaltar o azul das asas de um dos seus moradores mais  ilustres: a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari).

Considerado um dos psitacídeos mais ameaçados de extinção em regiões neotropicais, é uma ave endêmica da caatinga, o que a torna ainda mais vulnerável – dado o descaso eminente por este fantástico e complexo bioma. Apesar de suas áreas de reprodução estarem localizadas em duas unidades de conservação no interior da Bahia, a Estação Ecológica de Canudos e Estação Ecológica do Raso da Catarina, durante décadas foi vítima do tráfico ilegal de animais silvestres, chegando a ser considerada até 2008 como ‘criticamente em perigo’ na Lista de fauna ameaçada da União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN). Em 2000 não ultrapassava os 300 indivíduos, e apesar de todos os esforços pelos órgãos governamentais e Ongs para mudarem o panorama geral da espécie, seu status atual ainda é considerado instável.

Descoberta em 1823 e durante muitos anos confundida com a arara-azul-grande (Anodorhynchushyacinthinus), só foi descrita como espécie em 1856 por Charles Lucien Bonaparte, a partir de uma pele depositada no Museu de Paris e um espécime vivo do Zoológico da Antuérpia. Mas pode-se dizer que o veredito final veio com o desenho de Edward Lear, ilustrador da Zoological Society of London, cuja perfeição nos detalhes morfológicos permitiu Bonaparte diferenciar as duas espécies. E batizar a arara-azul da caatinga com o nome do artista.

Um dos fatores que contribuiu na confusão entre as araras se deve ao fato de que durante décadas os zoológicos da Europa recebiam indivíduos das duas espécies misturadas, provenientes de Belém, no Pará. Por não saberem a real procedência dos animais, a área de ocorrência da arara-azul-de-lear permaneceu desconhecida por quase 100 anos.

Por volta de 1960, Olivério Pinto, o “Pai da Ornitologia Brasileira”, em uma de suas expedições ao nordeste reconheceu um animal cativo em Juazeiro, na Bahia, como sendo a arara-azul-de-Lear. Marcou a região como uma possível área de ocorrência; tal informação serviu de base para nortear os ornitólogos Luiz Antonio Pedreira Gonzaga e Dante Martins Teixeira que acompanhavam o biólogo alemão Helmut Sick. Em 1978 chegaram no sertão baiano de Nova Canudos e avistaram na região da Toca Velha vários casais de araras descansando nos paredões rochosos de arenito. Ainda nesta mesma viagem conseguiram coletar um indivíduo na região de Serra Branca, no município de Jeremoabo, e encaminharam para o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Tratou-se do primeiro exemplar adquirido diretamente por ornitólogos e a partir disto a arara-azul-de-lear foi considerada rara, endêmica da caatinga baiana e ameaçada de extinção.

Já na década de 80 começaram os esforços efetivos para pesquisa e conservação da arara e sua área de ocorrência. Para Sick, o isolamento e preservação dos paredões rochosos da região, onde a arara era habitualmente avistada, eram primordiais para sua sobrevivência, cuja densidade populacional em 1985 não chegava a 100 indivíduos avistados.

Acreditava-se que o principal fator para a redução drástica das araras estava no intenso tráfico de aves para abastecer o mercado, principalmente internacional. Contudo, um viés da história brasileira atribuiu a mal ajambrada Guerra de Canudos no final do século XIX, um longo período de secas recorrentes no nordeste e a pobreza eminente no sertão, como importantes fatores para que se estabelecesse uma caça de subsistência, provocando ainda mais o declínio da população das araras.

Por conta da evidente e preocupante situação da espécie, no inicio da década de 90 o IBAMA criou o Programa de Manejo e Conservação de Arara-azul-de-Lear, com o intuito de unir todos os parceiros, entidades e pesquisadores engajados em reverter a dramática situação da espécie. Foi quando um dos parceiros do Programa, o instituto mineiro Biodiversitas, adquiriu 130 hectares da região que abrange a Toca Velha e a transformou na Estação Biológica de Canudos. Sua intenção era simples: preservar e conservar uma das principais áreas de reprodução da espécie. Em 2007, com estes esforços já colhendo frutos, ampliou sua área para 1500 hectares. Juntamente com a Estação Ecológica do Raso da Catarina, são as únicas áreas conhecidas de nidificação da arara. Os contínuos esforços dos pesquisadores e institutos conservacionistas, junto com ações educativas nas comunidades locais fomentaram uma considerável recuperação da população deste nobre psitacídeo na região, e atualmente estima existir entre 800 a 1200 araras voando azuladas nos céus do sertão.

Sabe-se que uma arara adulta macho pesa em torno de 890 gramas e mede cerca de 70 cm de comprimento total. Sua diferença mais evidente em relação à sua parente maior, a arara-azul-grande, está obviamente no tamanho do corpo e na cor, num tom azul celeste e acinzentado (enquanto a arara-azul-grande possui um tom azul-cobalto), mas principalmente no menor desenvolvimento da base dorsal do bico. Mas além disso, seu charme está em duas pequenas áreas amarelas, sem penas, onde seriam as bochechas. São consideradas monogâmicas, ou seja, formam um casal para toda vida, que em condições normais e naturais pode chegar a 40 anos. O período reprodutivo ocorre entre os meses de dezembro e junho e a maior parte das ninhadas possuí três ovos, mas apenas um ou dois deles apresentam desenvolvimento embrionário e chegam a sobreviver voando de seu ninho.

Sabe-se ainda que a espécie se extinguiu em várias localidades, como na região do Boqueirão da Onça, onde restam apenas dois indivíduos de uma população que desapareceu na década de 90. Este dois indivíduos vivem isolados e seu dormitório ainda não foi localizado devido a inacessibilidade da área. As araras ali estão fadadas a extinção e a única chance de repovoar a área seria um meticuloso programa de reintrodução. A existência das aves nesta localidade indica que a área de ocorrência das araras-azuis-de-lear era muito maior do que a que se conhece hoje, apesar do evidente declínio no tráfico e um aumento considerável na população remanescente no Raso da Catarina.

Um outro fator tem colocado em risco sua sobrevivência: o conflito com os agricultores. Sabe-se que a base alimentar das araras é um pequeno coquinho da palmeira Licuri (Syagrus coronata); na baixa temporada de sua frutificação, as araras se movem em busca de frutos selvagens da caatinga, que consomem em locais e quantidades ainda desconhecidos pelos pesquisadores. Com o corte intenso e desenfreado da vegetação natural e a expansão agrícola, não tem havido outra solução alimentar para a arara senão atacar copiosamente a cultura de milho. Pronto, está criada a discórdia entre o animal e o homem! Foi pensando em minimizar este conflito que a bióloga Simone Tenório, nos idos de 2006, deu início a um trabalho de cunho social, mas focando principalmente a conservação da arara. Ao descobrir uma antiga tradição da população local em produzir utensílios domésticos feitos com a palha da folha de licuri, reconheceu ali uma forma de evitar o corte das palmeiras.

Com o apoio de institutos para o fomento de geração de renda, Simone auxiliou no resgate desta tradição e na criação de cooperativas de produção de artesanato. Desta forma, alguns agricultores perceberam que manter as palmeiras nos campos áridos da caatinga seria benéfico tanto para a produção do milho quanto para uma outra fonte de renda. O resultado tem sido positivo em alguns locais e comunidades, tanto para o povo quanto para as araras. Obviamente a situação ainda está longe de estabilidade, mas é um bom começo. Mas já é possível observar os pequenos cestos cuidadosamente trançados e araras esculpidas em pau de umburana decorando as casas simples do povoado de Serra Branca. E com um toque de otimismo, admirar as araras-azuis-de-lear voando aos bandos, exibindo seu charme inconfundível, brincando de azular ainda mais o céu anil do sertão.

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