Torres del Paine

Blog National Geographic Brasil

O ano era 2005. O dia, 31 de dezembro. Eu acabara de desembarcar em Punta Arenas, no sul do Chile, vindo da Antártida. Viagem solo, mas não queria passar o réveillon numa cidade onde não conhecia viv’alma. Se tivesse que virar o ano comigo mesmo, que fosse ao ar livre. Horários de ônibus checados, uma gastronomia rápida na mochila, quer saber? Vou pra Patagônia, Torres Del Paine!

Seriam poucas horas de viagem e se tudo fosse bem, afinal Murphy não iria rogar praga para um viajante solitário no ultimo dia do ano, eu conseguiria chegar ao Parque, montar minha barraca e comemorar com um vinho chileno de caixinha. Achei meio sacrilégio tomar vinho em caixa, mas se são os chilenos, grandes produtores, que fazem isto, quem sou eu pra reivindicar um bom Cabernet! E lógico, uma boa ceia regada a macarrões semi-prontos e atum em lata!

Olhei o mapa do Parque. A opção mais óbvia de caminhada seria o que os mochileiros chamam de ‘W’ – uma trilha de uns 30 km, onde tem acesso a Torres Del Paine e costeia um lago azul turquesa. Fantástico seria, não fosse aquela expressão que ouvi de alguns mochileiros – ‘El Completo’, e que obviamente me chamou mais a atenção. Uma trilha que dava a volta em grande parte do parque e tinha a singela quantia de uns 130 km! Fiz uns cálculos, seis, sete dias, tiro de letra! Bom, fiz a trilha inteira, mas percebi que ‘esta letra’ eu desconhecia…

Comecei a trilha às 7 h do primeiro dia de 2006. Sempre achei simbólico começar o ano caminhando; dá a sensação de liberdade, que será um ano de muitas viagens, novidades, pé na estrada. A organização do parque era digna de referência; um mapa muito bem detalhado descrevia com precisão as distâncias percorridas e o tempo entre as áreas permitidas para acampamento, o que dava ao viajante uma noção exata de como caminhar. Olhei o primeiro trecho, cerca de 18 km. Vou seguir até o próximo, pensei. Estou empolgado, pique total, porque não? No final do dia percebi o erro: início da viagem, mais comida, mais peso na mochila; velocidade acelerada pela vontade, pernas e músculos ainda em adaptação. A bota de neve rígida, resquício da Antártida, não tinha mobilidade alguma para uma trilha de pedras. Os seis dias restantes foram atormentados pelas bolhas lancinantes no pé, cansaço extremo pelo acúmulo de final de viagem – afinal, só o ano era novo! E aquele velho pensamento que surgia nos piores momentos – o que é que estou fazendo aqui?

Mas quando os desconsolos desapareciam da mente, o coração assumia com um calmo alento. Aquela sensação primorosa de estar vivo sobe pela espinha e a gente simplesmente sorri. Foram dias imersos na montanha, abraçado pela brisa fria e um silêncio aconchegante, por reflexões que nos fazem perceber a generosidade da natureza e a grandiosidade da vida.

E apesar do sofrimento físico em vários momentos, me senti abençoado pela sombra quase que diária de um condor plainando sobre minha cabeça e um zorro que várias vezes deu o ar da graça. Os olhos marejados ante a visão esplendorosa do Glaciar Grey e dos bosques centenários de árvores tortuosas. O banho ‘de quebrar ossos’ no Rio Los Perros, os campos floridos como uma paleta de pintura, as cachoeiras de águas verdíssimas e o amanhecer mágico nos paredões rochosos de Torres.

E como se não bastasse tudo isto, sou recebido no final da trilha pela curiosa afirmação de um guarda-parque: “¿Usted viene de El completo? Porque él es cerrado, con peligro del derrumbamiento!” (Você fez a trilha completa? Porque está fechada, com perigo de desmoronamento!)

Definitivamente, os melhores momentos da vida são quando nos tornamos cúmplices de sua inegável ironia.

Gostou? Comente! (3 comentários feitos)